IMG_5016IMG_5019IMG_5024Tarde de feriado em La Laguna. Temperaturas altas, vazio de gente e uma certa solidão que proporcionou alguns regressos. Há uma Espanha onde me sinto em casa, a do calor que sempre traz a imagem de sol e sombra e de como estas duas realidades se fixam noutra que é a do coração que os recebe e transforma. Tardes de Espanha, com as inquietações de Cervantes, a música de Ibanez e a poética de Alberti. São sempre assim as melhores, aquelas onde consigo dar um passo mais para o que desconheço a partir do caminho calcorreado repetidamente do que me é conhecido.

No meio do mar, La Laguna. No centro do pensamento a ideia de uma velha cidade em terra, na perfeita junção de distância e de desafio. Sinto-me esta cidade.

Vulcão Teide

Chegámos à ilha há dois dias. A tarde de hoje dedicámo-la a conhecer o Parque Nacional que envolve o Vulcão Teide. A subida pelo extremo norte da ilha foi proporcionando uma descoberta de uma das paisagens naturais que mais me tocou.

A paisagem de lava a percorrer as zonas planas e os declives rebenta-nos no olhar como uma flor absoluta e eterna que narra sem piedade a memória de sol, de fogo e de silêncios daquele lugar.

Tenho andado, nestes últimos dias, a preparar um novo trabalho poético. Sobre a paisagem do Teide, deixei este texto.

1

A lava permanece sólida e negra

no sopé do vulcão, lembrando tudo.

Não se pode esperar mais

sobre aquilo que o amor possa ser

e do seu lento guardar.

2

Os catos esperam as estações na paisagem deserta.

A luz tem a tradução de longos silêncios

e, sobre a pele dos catos, envelheço a nossa

com a mesma beleza que tem o tempo

ao conhecer da luz o seu espaço de solidão

e de morte.

 

O que inexiste.

É esta a direção do olhar. Tenho na memória um conjunto de paisagens e saio para nelas recolher as coisas perdidas, as frases inacabadas, o interior das casas desvividas, o intimismo da pele, a quentura do beijo e a lonjura desejada do coração.
Tenho uma memória que é um bicho à solta pelo que o mundo estará para ser. Uma memória é um corpo onde sepultámos as mais incompreendidas moradas, incendiando os seus abismos no que rente nos sufoca e no que distantemente nos conta.

Havemos de parar um dia para, recordando, sermos o que nunca alcançámos. 
O que fomos, o que todos sabem que fomos, é a nossa morte. Ninguém vive no que já viveu. Só esse horizonte se assemelha à ideia de Deus e à sua capacidade criadora: viver no que sabemos da incompletude e ser, ser sempre, para que seja essa a mais deslumbrante imagem de se ir morrendo para nascer do que inexiste. 

A natureza do desejo.

As escadas. As sombras sobre as escadas. O corpo sobre as escadas. As suas feridas. O amor aos pedaços. Não há uma forma de segurar as emoções. Há uma forma de suster a respiração e olhar o horizonte sem que a liberdade de olhar se canse de ser a nossa parte que sempre parte.
Somos um animal de luz e de sombra, um animal antigo, um animal muito doce e muito triste para que assim consiga inventar a possível alegria. 
Tenho do tempo a noção de uma profunda inquietude onde tudo está por fazer, para acabar sepultado no melhor das horas que não somos nem sabemos. Essa fatalidade é a única felicidade dos humanos: ser sem que se saiba completamente.
Deixo-te uma flor entre as mãos, uma flor que não é uma flor mas que sou eu a tentar expressar tudo o que  uma flor possa ter sido entre mim e a minha ideia de ti.
Deixo-te uma fera que é a forma de sentires o quanto é possível ser a ferida e a cura dos dias enfurecidos e por isso tão extremos no amor. Não há amor sem fúria, nem fúria sem a razão maior de amar a impossibilidade das coisas.
O caminho é a impossibilidade e os cadáveres de hoje vivem apenas dos dias possíveis, do possível amor, da desnecessária alegria, da esperada palavra, ou seja: de tudo o que morreu por ser sabido, por ser evidente, por ser na fronteira putrefacta das horas esperadas.
Quero matar-me na tua vida e dar por mim como se alcança uma manhã e para dela romper a virgindade da luz e nela romper o que se não sabe para se poder ser.

Herdo-te no que não tenho, sobrevivo-nos porque o desejo é uma pergunta, infinitamente isso.

Ter.

Tenho no coração um jacaré que conta histórias longínquas ao ouvido de distantes princesas que chegam e que partem porque todas as princesas são distantes e todos os jacarés contam histórias.
Tenho no coração um relógio que conta tempos e na palavra um sem tempo que guerreia esse coração atempado.
Tenho para entregar uma planície infinita e para guardar um vento antigo e sem direção para que nada seja senão no que será.
Tenho uma mão para segurar a carícia que inventaste e uma carícia desinventada que te fecharei nos braços para que nunca sejas o que o corpo não foi capaz de libertar.
Tenho no coração um frasco de formol para conservar na minha morte as mortes todas que fui esquecendo.

Tenho o que não existe e essa é toda a riqueza.

Fortuna.

Pergunto-me.
As certezas são mortes. O horizonte é um desconhecimento.
Só os cadáveres rejubilam pelo que sabem.
Feliz do que entende que a alegria está no que se desconhece.
O que sabemos mais não é do que o pobre alforge que nos sintetiza
para seguir em frente e enfrentar.
Ninguém é rico no que atingiu.

Tudo que se atinge é passado. 
Tudo que nos falta é o que somos verdadeiramente.

Partir.

1
O mundo é uma paisagem nossa.
Viajamos pelo que queremos. E as fronteiras são o que queremos.

2
Trago-me para me poder dar por inteiro.
Dar é a única liberdade.

3
Um dia, no meio de uns campos de arroz no sul da China,
apeteceu-me perguntar pela parte de mim dali que me faltava.
Na resposta retomei uns textos antigos
mas sobretudo deixei que entrassem o vento suave,
a quietude da terra, o calor húmido e o disperso olhar.
Havia um corpo que me nascia.
Estava encontrada a resposta, a justa medida dos viajantes,
a infinita medida de quem tem da partida a mais íntima ciência.

As formas do tempo.

As paredes seguram-nos a ingénua noção do tempo.

Inscrevemo-nos nelas e não sabemos que há um momento para sucumbir,
não porque nos matem, mas porque já somos outros
sendo tudo o que fomos
e o que não sabemos do que virá.

É essa a razão e a mais bela expressão da vida,
da nossa e do mundo.

Receber o tempo.

Receber o tempo. Olhar em volta e esperar pelo que já foram as cidades. As cidades regressam-te e fazem com que sejas sempre a parte de ti que desconheces e que recebe no novo o que nunca soubeste do que julgaste antigo.
O mistério que envolve o nosso passado no nosso presente é o mais verdadeiro mistério das nossas vidas. Somos a confluência entre as memórias que guardámos com o que nos espanta no momento presente mais o que no presente transforma o que a memória foi num novíssimo corpo que é o do instante que se está a viver agora.
Dito de outro modo, todo o passado morre, sobrevivendo apenas o que, significando no presente, por este se transforma em outra coisa que passado não é. O amor não é a lembrança do amor, um filho não é a sua lembrança e uma palavra de antigamente nunca mais é o que antigamente fora, pelo menos em nós.
Gostava de ser matemático e fazer esta que seria a mais bela das contas: o que se subtrai ao que se viveu pelo esquecimento ou pela indiferença? E o que se volta  a somar ao significado presente do que restou da conta inicial da memória entretanto subtraída mas com saldo ainda? Que números seriam esses? Que nomes seriam esses? Que infinitos seriam?
Receber o tempo. Olhar em volta e esperar pelo que já foram as cidades. Sair por este tempo e sentir uma muito bela comoção por saber que estaremos a morrer, mas antes disso, ainda havemos de viver, de viver como se tudo parecesse eterno e tudo pudesse regressar um dia, só não sabendo nós o quê e por que razão.

Dia do Corpo de Deus.

As linhas da vida atravessam a energia dos sonhos e transfiguram-se num desconhecimento que nos apaixona. Olhamos em frente, enchemos de perguntas o horizonte, somos o que não morre no corpo de uma pergunta. Se Deus falasse gastaria todo o seu tempo a responder-nos. Como não fala, somos nós que preenchemos a vida a perguntar e a responder, como se responder fosse um fim.
Na fronteira de uma resposta, descobre-se o apetecível território de um não saber e aí seguimos de novo como se ressuscitar das dúvidas fosse a única semelhança entre Deus e os Homens.
A tarde eleva-se. É dia de Corpo de Deus. É dia de um corpo para as perguntas e esse é o que nos garante a vida. O resto é passado, e também o passado só serve para perguntar daqui em diante como a mais bela, mais real e inquietante fortuna.

O Jardim de Lourdes Ramalho

para a dramaturga e poeta Lourdes Ramalho, grato pelo seu acolhimento em Campina Grande.

Era um jardim, um viveiro de aves
e uma voz que foi a melodia perfeita.
O meu quase silêncio e a minha infância inteira.
Era a palavra antiquíssima e nova
a ser no meu ser a desregrada regra.
Guardei-a como as crianças guardam um segredo
que por assim ser dura a vida inteira.
Era o que eu precisava para ser o que eu era.
O seu dizer num Sertão que quis a vida toda,
a quietude que revi nas suas árvores
que eram árvores e sombra e recorte de luz
em sua voz tão de mim que o silêncio guardava.
E é ainda, por ser no tempo a saudade de tudo
e nesse tudo a brevidade que o tudo é.
Tenho um coração exilado para sempre
em seu quintal de Campina
e aí planto a árvore que não sou,
a sombra que me fala na luz que não entendo e que me é.
Pergunto, querida Lourdes, pela quietude da tarde
e sei-a infinita por vir de si a minha voz de tudo,
o que me faz chorar ainda hoje por me perder
no que sabe do mundo
que sendo seu
é o de todo eu que consegui dar
e que por ser seu esse dar espalhou
no que dar fui conseguindo
a razão infinita, o justificado amor
pelo que o amor possa justificar alguma vez.
Era um jardim, um viveiro de aves
e uma voz que foi a melodia perfeita.
Era o que será.
E, se Deus fosse, milagre seria
que por ser gente de quieta voz partiria
para o que mundo desamarrando
fazia seu e não sabia.

Perguntar.

É preciso abrir um fecho no coração e começar uma estranha viagem. Saber que deixámos montanhas e vamos no horizonte à procura de outras, muito novas, muito à altura de tudo que ainda não dissemos, nem sequer ao recatado coração.
Falas-me dos dias e mesmo assim só saberei que as montanhas guardam os seus ventos, os seus bichos, as suas casas, as suas mortes mais poéticas.
Falas-me das guerras, das perdas, das canções tristes dos dias inexplicados. Falas-me assim da forma como pouso o olhar sobre cada palavra que foste colocando nos ventos, nos bichos, nas casas, nas nossas mortes mais poéticas. E cada palavra tua era uma montanha e cada montanha tua era tudo que eu tinha para entregar ao amor inexplicado, à mais profunda forma de amar o que não conheci.
Deixo para trás as montanhas. Sigo até onde desconheço e sei que esse é o caminho. Amanhã, se tiver de mudar, é por não saber. E não há razão mais justa, mais digna. Até para que se morra, deixando na paisagem montanhas onde já nada soubemos para saber depois e a seguir partir.
É preciso abrir o coração e escutar as perguntas. As perguntas podem ser o vento, podem ser os bichos, podem ser a morte, mas no fundo as perguntas são o que és. A pergunta és tu. E terás de seguir, diz-me este velho e companheiro coração.

O ser e o ficar.

Plantar a luz no epicentro do olhar.
Rebentar sem geografia
pelos lugares
e ser o ser sem rasto que recolhe
para acabar o dia
como acabam os lugares
de infinita memória.

Janelas sobre o mundo.

Tarde de um tempo a acalorar, remetendo para a memória dos trópicos. Paro por enquanto no que guardei dos verões, sobretudo os da infância e das suas longas pausas. 
Ando outra vez nas pegadas do Largo, de triciclo e de carro de pedais. Ando pelas cascatas dos santos populares que fazia com os vizinhos. Ando pelo cheiro a uvas americanas do meu quintal e pela miragem ao fundo da velha pereira, junto ao muro. Ouço as vozes das festas, o som dos bombos e o movimento dos gigantones. Retomo os amores perfeitos nos jardins de maio da antiga Vila. 
Retomo os joelhos esmurrados das correrias e tropeço de novo no acalorar literário dos trópicos, da literatura latina que vinha de lá. 
Paro agora nas noticias. Ocupa-me o coração quase todo a ideia de se contarem alimentos por familia em Caracas. Lembro-me de quando se fugia para lá em busca de fortunas. Não me assombra a ideia de fim dessas passagens, mas antes a ideia de, nesta tarde, existir gente que sem culpa conta alimentos por aquelas paragens. Gostava que o calor de hoje por cá tivesse a serenidade do calor de lá de outros tempos. Precisávamos todos de uma quietude assim. 
Bebo uma água. Encaro a tarde e fico-me nesta janela pelo mundo, porque estar vivo e ser humano é ser de muitos lugares, embora se esteja em muito poucos. 
Cada sítio onde somos guarda paisagens imensas. E essa sim é a pátria. E esse sim é o nosso lugar, onde tudo guardamos pela regra misteriosamente bela do que fomos capazes de amar.

Os limites.

É preciso reinventar os limites. Traçar na miragem do tempo as opções, esse corpo insubmisso e puro onde o universo nos cresce por força de vermos de perto o horizonte do outro. É preciso que sejamos o outro vezes sem conta para sermos o eu mais fundo e duradouro.
Quantas vidas teremos? Se uma for viveremos para quase tudo deixar intocado e será uma ilusão o termos sido alguma coisa na engrenagem do mundo. Se muitas outras, seremos dessas o desconhecimento absoluto, o segredo dos deuses.
Mas quantas vidas teremos numa só vida? Certamente as que mostrarmos. Se não mostrarmos morreremos sem nenhuma, pois até nós mesmos que o sabíamos não estaremos cá para nos sobreviver.
Não importa a finitude. Importa que saibas de mim com eu sei de ti. Quero que saibas que te esbanjarei por tudo que faço com os outros só para que não morras em mim.
Somos às vezes as mais serenas sepulturas de nós mesmos. Por isso, o que aprendi contigo dividirei com o mundo. O que amei de ti amarei com o mundo. Amarei até que se confunda o bater do coração com o natural pulsar da terra, o natural pulsar dos outros. Poderei partir então. Mas não irei só. E sobretudo nunca te deixarei morrer.

Ser Livre e Ser Humano.

(foto de Manuel Meira )

Dia da liberdade na minha terra. Assistimos por cá a algo inimaginável noutros tempos, juntando David Munir, imã da mesquita central de Lisboa, e o Arcipreste Padre Pedro Daniel numa oração à paz em árabe e em português, junto do monumento aos combatentes mortos durante a guerra colonial.
A liberdade faz-se maior e faz-se melhor com gestos como este. Não é tanto pelas religiões, pelas pessoas envolvidas, é pelo simbolismo que encerra o juntar os humanos, o juntar as energias, o juntar as diferenças, o fazer caminho assim de perto.
Estávamos lá crentes, ateus, agnósticos. Estávamos lá porque entendemos que é preciso chamar a atenção para os preconceitos que vão justificando as guerras. Estávamos lá porque é preciso chamar a atenção que os homens e as mulheres são humanos e que a humanidade não é automática e tem de ser construída, sob pena de, se assim não for, passar a ser uma narrativa com tudo de trágico que isso pode significar para os tempos.
Será inesquecível esta manhã com o soar das palavras cantadas em árabe e ditas em português, será inesquecível o som do «Toque do silêncio» interpretado em trompete pela nossa Beatriz, estudante de música da Academia José Atalaya, em memória dos que de Fafe foram morrer na guerra em África. Será inesquecível porque começou por ser humano, depois poderá ser o que cada um de nós quiser. Mas fomos humanos todos juntos para começar. E isso basta para que se não esqueça uma manhã assim.

O tempo e os seus vazios.

A transformação do mundo é um dos mais belos enigmas. Quando olhamos para as nossas cidades vemos com frequência o restauro de antigas casas que renascem na forma de edifícios de utilidade pública. Passam a ser, normalmente, sedes de registos, museus, arquivos, locais de cultura, entre outras finalidades.
Quando as atravesso, não deixo de lembrar que por aqueles sítios já foi projectada a casa, com o cuidado e o sonho sobre cada aposento, para ser usado na intimidade. Que por aqueles espaços já brincaram crianças, já se leu em longos serões, já se amou e desamou, já se viu nascer e viu morrer. Já ali se cozinharam as mais diversas iguarias que certamente marcavam as estações, já ali se ouviu a chuva e se abriram as janelas para deixar entrar a aragem nos verões mais duros.
As paredes dessas casas estão cheias de histórias privadas e são a sua primeira pele, a sua primeira camada de vida. No entanto, a vida de cada um dos seus proprietários levou rumos díspares e aqueles que eram os lugares de dentro passaram a ser os lugares de toda a gente. Não há mal nenhum nisso. É apenas o tempo a passar pela nossa existência e pela dos outros e, ainda bem, que sobrevivem exemplares merecedores de serem recuperados e reutilizados.
E mais: ainda bem que há edifícios que reutilizados, ainda nos oferecem as hipotéticas histórias e as emoções daqueles que lá viveram e ainda nos acenam de outras épocas, redimensionando vazios, preenchendo em nós o que, não tendo vivido, são as raízes do que sabemos ser o nosso tempo, esse tempo que há de acenar a outros tempos para sermos dele a melhor ficção dos dias. Pelo menos assim se espera.

A oferta.

Revisitar as flores de David Hockney e retomar o quotidiano deste início de século quando, inverno dentro, descobria pintores e suas obras, quando, inverno dentro, escrevia com elas e sobre elas, quando, inverno dentro, parava de ser o que era para ser também as coisas que via.
De minha casa vêem-se as flores de Hockney e ouve-se a chuva misturar-se com as músicas de uma vida, marcando para sempre as estações. Distribuímos músicas pelas estações, textos pelas estações, pessoas, emoções, despedidas pelas estações.
As mais belas despedidas são as que conseguimos fazer com o tempo de um ano. Despedirmo-nos de uma estação é de uma beleza rara se pensarmos que nunca mais voltaremos àquela estação, que não seremos os mesmos e que, se regressarmos, seremos o que fomos somado ao que somos e ao que pensamos que poderemos vir a ser. 
O David Hockney, numa altura da sua vida, desenhava flores todos os dias e oferecia-as como se fossem flores verdadeiras. É curioso entender que as flores que ofertava além de verdadeiras, ofereciam também a verdade. A dele e a de quem as recebia. Haverá mistério mais belo?

«Sometimes it snows in april».

Este é o dia em que perdemos um dos maiores. Prince deixou-nos, deixando um enorme vazio. Ouvi-o pela primeira vez em meados da década de oitenta pela mão do Nelson de Quinhones, numa apresentação mágica de quem já o ouvia e sabia quase tudo sobre esta figura absolutamente ímpar. Mudou-nos a juventude e amparou-nos a música maior que tínhamos.
Ficaremos. Claro que sim. Mas a perda é irreparável e tem associado o sentimento da revolta por todos sabermos o quanto mais teríamos para ouvir se a vida por cá continuasse. Mas foi um privilégio infinito este cruzamento de Prince com o mundo, com o nosso.
Só me vem à lembrança o tema «Sometimes it snows in april». Está uma noite gélida no coração do mundo por se ter aberto uma infinita primavera nesse mesmo coração ao longo dos seus 57 anos de vida.
Ficaremos. Claro que sim. Mas hoje, estamos todos muito tristes por todos os dias felizes que já vivemos com a sua obra, a obra que de facto terminou.

Para ouvir: https://youtu.be/zlZONgpmw58

«Sometimes it snows in april».

Tracy died soon after a long fought civil war,
just after I’d wiped away his last tear
I guess he’s better off than he was before,
A whole lot better off than the fools he left here
I used 2 cry 4 Tracy because he was my only friend
Those kind of cars don’t pass u every day
I used 2 cry 4 Tracy because I wanted to see him again,
But sometimes sometimes life ain’t always the way…

Sometimes it snows in April
Sometimes I feel so bad, so bad
Sometimes I wish life was never ending,
and all good things, they say, never last

Springtime was always my favorite time of year,
A time 4 lovers holding hands in the rain
Now springtime only reminds me of Tracy’s tears
Always cry 4 love, never cry 4 pain
He used 2 say so strong unafraid to die
Unafraid of the death that left me hypnotized
No, staring at his picture I realized
No one could cry the way my Tracy cried

Sometimes it snows in April
Sometimes I feel so bad
Sometimes, sometimes I wish that life was never ending,
And all good things, they say, never last

I often dream of heaven and I know that Tracy’s there
I know that he has found another friend
Maybe he’s found the answer 2 all the April snow
Maybe one day I’ll see my Tracy again

Sometimes it snows in April
Sometimes I feel so bad, so bad
Sometimes I wish that life was never ending,
But all good things, they say, never last

All good things that say, never last
And love, it isn’t love until it’s past

Guardar.

Aprender repetidamente. Guardar na luz dos dias a frase mais curta e deixar que nela habite o que não nos morre. Ser o que somos com tudo que salvámos, com tudo que condenamos à imortalidade. Ser estranho para poder ser de dentro e deixar que o espanto seja a condição de andar vivo. Não há amor sem surpresa, não há abraço que não seja toda a vida o primeiro, não há sorriso que não abra a estrada indefinível do que se virá a amar a seguir.
Somos a imagem dos passos todos. Não nos devemos preocupar com quantos nos faltam para o fim, porque na realidade estamos, a partir do fim, guardando para sempre os passos dados.
A tarde é uma viagem para sentir falta de tudo o que guardámos. Talvez assim se defina a saudade. Talvez assim se sintetize a vida. Estendo o olhar quieto à paisagem desordenada das emoções, comove-me essa desordem e essa perdição. E quando me encontro não é senão para que possa dar infinito à pergunta seguinte.

Se pararmos de perguntar começamos a morrer. Numa pergunta existem mil respostas, mil dias, mil cansaços, mil vezes em que amámos. A tarde é uma viagem para sentir falta de tudo o que guardámos. Guardar-te-ei na luz de todas as tardes. Apenas aí, para seres intocável e imortal. Tal como os deuses ou as pessoas que não desistem de ser apenas o que amam.