Tarde de um tempo a acalorar, remetendo para a memória dos trópicos. Paro por enquanto no que guardei dos verões, sobretudo os da infância e das suas longas pausas. 
Ando outra vez nas pegadas do Largo, de triciclo e de carro de pedais. Ando pelas cascatas dos santos populares que fazia com os vizinhos. Ando pelo cheiro a uvas americanas do meu quintal e pela miragem ao fundo da velha pereira, junto ao muro. Ouço as vozes das festas, o som dos bombos e o movimento dos gigantones. Retomo os amores perfeitos nos jardins de maio da antiga Vila. 
Retomo os joelhos esmurrados das correrias e tropeço de novo no acalorar literário dos trópicos, da literatura latina que vinha de lá. 
Paro agora nas noticias. Ocupa-me o coração quase todo a ideia de se contarem alimentos por familia em Caracas. Lembro-me de quando se fugia para lá em busca de fortunas. Não me assombra a ideia de fim dessas passagens, mas antes a ideia de, nesta tarde, existir gente que sem culpa conta alimentos por aquelas paragens. Gostava que o calor de hoje por cá tivesse a serenidade do calor de lá de outros tempos. Precisávamos todos de uma quietude assim. 
Bebo uma água. Encaro a tarde e fico-me nesta janela pelo mundo, porque estar vivo e ser humano é ser de muitos lugares, embora se esteja em muito poucos. 
Cada sítio onde somos guarda paisagens imensas. E essa sim é a pátria. E esse sim é o nosso lugar, onde tudo guardamos pela regra misteriosamente bela do que fomos capazes de amar.

palavras dos outros